Cafeteria Especial: Mudança de Vida
- Jornalismo
- 3 de dez. de 2019
- 8 min de leitura
Atualizado: 6 de fev. de 2020
Fotodocumentário por: Eduarda Loregian e Olga Helena
A vida de Luiz Guilherme Prim, Fernando Manerich e Leandro Garcia da Silva não é a mesma desde dezembro de 2018. Os jovens que possuem Síndrome de Down tem hoje, através da oportunidade de trabalho, a possibilidade de ter uma vida como a das outras pessoas na sociedade. E essa mudança só foi possível após Delfino Pellegrini Andrade e Giorgio Sinestri, terem a primeira mudança de vida, idealizando a Cafeteria Especial.
A Cafeteria, localizada na rua Hermann Huscher, nº 104, bairro Vila Formosa, em Blumenau (SC), leva esse nome pois busca reforçar a ideia de que todo ser humano é diferente um do outro na forma de ver o mundo. "Não vemos o mundo como ele se apresenta, como ele é, vemos o mundo a partir da nossa criação mental gerada a partir de histórias que vivemos e experiências marcadas em nossa memória. Isso nos faz diferentes, afinal ninguém enxerga a vida da mesma forma que o outro." ressalta Delfino.
E foi tendo em vista esta filosofia de que todos somos diferentes, que eles criaram a Cafeteria de Especial. Para mostrar que todos os seres humanos são especiais, únicos e singulares. E essa é a proposta do projeto, provar que não são apenas os portadores da Síndrome de Down - com frequência identificados como especiais - que são especiais, mas que todos somos especiais, e que as oportunidades precisam ser dadas para todos.
“Todos somos especiais e diversos, isso é o universo humano. Precisamos parar de excluir pessoas em função de classificações e padrões, pois não são só os deficientes que são excluídos, mas várias outras pessoas” pontua Delfino.
Como tudo começou?
A Cafeteria Especial nasceu de uma outra empresa que os idealizadores Giorgio e Delfino são proprietários, a Educare Desenvolvimento Humano. A empresa trabalha com gestão de pessoas e presta serviço para outras empresas. Como trabalham com a parte de comportamento e mudança de atitude, os idealizadores resolveram implantar uma linha social na empresa. Sempre que alguma empresa contratasse os serviços da Educare, eles ofereciam um bônus, um trabalho de desenvolvimento com alguma instituição a escolha da empresa, sem acréscimo de custo.
Geralmente as empresas escolhiam alguma casa de acolhida de crianças carentes, idosos ou alguma escola. Giorgio e Delfino então iam até esses lugares para iniciar o trabalho de desenvolvimento. Porém, esses sistema começou a incomodar os sócios, afinal como os serviços eram contratados por tempo determinado as empresas acabavam não davam continuidade ao progresso feito nos primeiros encontros.
“Para quem trabalha com gestão de pessoas o processo contínuo é importante no desenvolvimento humano, um ou dois encontros não são suficientes, podendo gerar até uma frustração pela não continuidade” afirma Delfino. Por conta desta realidade, os sócios foram em busca de algo que representasse e abraçasse toda a vontade de ajudar, e que pudesse ter continuidade, sendo um local para falar de diversidade e inclusão com a participação da sociedade.
“Queríamos algo que gerasse reflexão e mudança social de comportamento” afirma Delfino. Foi então que, durante uma viagem de Giorgio a São Paulo, surgiu o insight do projeto. Ele visitou a primeira cafeteria deste modelos no país, em setembro de 2017, em São Paulo (SP). No momento em que esteve no local ele soube que poderia fazer o mesmo em Blumenau (SC) com a ajuda de Delfino.
“Ele compartilhou comigo a ideia e já no outro dia abraçamos o projeto e começamos a estruturá-lo. Apresentamos a ideia para entidades que trabalham com pessoas com Síndrome de Down em Blumenau (SC), que são a Sorrir para Down e a APAE, e a partir daí começamos a estruturar e desenvolver o trabalho com eles de inserção no mercado de trabalho, aproximação e geração de confiança com as famílias”.
Foram cerca de um ano e três meses de trabalho nas entidades e estruturação da cafeteria, até que ela pudesse ser aberta em dezembro de 2018. “Capacitamos todas as pessoas com Síndrome de Down que manifestaram interesse em desenvolver habilidades culinárias. Foram cerca de 25 pessoas que participaram de oficinas todos os meses e que passaram pelo processo de seleção no 2º semestre de 2018” conta Delfino.
Todo o processo com as pessoas interessadas durou quatro meses, e assim foi possível definir as pessoas que comporiam o quadro de funcionários da cafeteria. Atualmente são três pessoas com Down contratadas: Luiz Guilherme Prim, Fernando Manerich e Leandro Garcia da Silva. Além deles outras pessoas estão envolvidas de maneira voluntária, pois não quiseram ser contratadas. Para auxiliar os funcionários com Síndrome de Down, outras pessoas são contratadas ou voluntárias no local.
Participação no Programa Caldeirão do Huck
A Cafeteria Especial se viabilizou a partir de julho de 2018, quando os idealizadores iniciaram o processo sem capital para abrir uma cafeteria. Para eles o dinheiro não era o principal ponto, mas era necessário arrecadá-lo. Como empresa, Delfino e Giorgio iniciaram a divulgação do projeto, “para nós a Cafeteria já era um projeto de abrangência municipal, estadual e social. Por conta disso, pensamos que as pessoas precisavam entender que mesmo surgindo da gente, a cafeteria era uma entrega nossa para a sociedade e que todos poderiam se envolver e participar.
Com a necessidade de conseguir dinheiro, os idealizadores abriram um financiamento coletivo na internet, convidando a sociedade para fazer parte através do site Benfeitoria. As pessoas foram acessando e colaborando, e foi neste momento que a produção do programa Caldeirão do Huck encontrou o projeto, no site do financiamento coletivo.
Eles entraram em contato com os idealizadores por volta das 12h, convidando-os para participarem do programa, a primeira li. Giorgio atendeu o telefone, mas não acreditou muito na proposta achando ser um trote e disse que estava ocupado, se fosse mesmo verdade eles teriam que retornar mais tarde. A pessoa do outro lado da linha perguntou então que horas poderia telefonar, e Giorgio orientou que retornasse a ligação às 18h daquele mesmo dia.
Delfino estava na mesma ala que Giorgio no momento da ligação, e compartilhou a dúvida da veracidade da ligação com o sócio. Eles aguardaram e novamente, às 18h, o telefone tocou. Dessa vez Giorgio deu atenção ao telefonema e a conversa estendeu-se. A pessoa do outro lado da linha viu o projeto na internet e interessou-se pelo cunho social da ideia e defendeu que poderia falar sobre no programa Caldeirão do Huck.
A gravação aconteceu em outubro de 2018 e o programa foi exibido em março de 2019. Na época o local ainda não havia iniciado a reforma na casa que hoje abriga a Cafeteria, mas mesmo assim, a produção da Rede Globo esteve no local e montou um espaço para a gravação e divulgação do projeto. No programa eles participaram do jogo The Wall, um quadro de perguntas e respostas. O quadro desafia uma dupla contra uma parede onde aparecem as perguntas e é possível conquistar pontos ou perdê-los. Os pontos somam dinheiro porém apenas a decisão final de uma participante que não sabe o valor arrecadado decide se a dupla sai ganhando ou perdendo.
No jogo, Delfino optou por rasgar o contrato inicial do jogo, apostando no valor obtido pelo companheiro na parede. Porém, a parede estava zerada, e os idealizadores saíram do programa sem ganhar nenhuma quantia em dinheiro. Porém, Delfino conta que a visibilidade que eles ganharam com o programa foi suficiente para que eles pudessem realizar o sonho da Cafeteria Especial. Contados de todo país, inúmeras empresas e turistas conheceram o projeto e puderam ajudar através do financiamento coletivo.
“Muita gente vem para Blumenau e coloca a Cafeteria Especial no seu roteiro de lugares para conhecer. A própria prefeitura já nos procurou perguntando se não tínhamos interesse em colocar a Cafeteria como ponto turístico da cidade, em função da nossa representação” conta Giorgio.
Inspiração
O projeto de Blumenau, que foi inspirado na primeira Cafeteria em SP, inspirou também um novo projeto, a Cafeteria e Doceria Bem-me-Quer, em Jaraguá do Sul. A terceira Cafeteria Inclusiva do país inaugurou em outubro deste ano. A primeira Cafeteria, que estava instalada na rua Augusta em São Paulo, e chamava-se Chefs Especiais Café, hoje chamada UniDown.
Para a inauguração da terceira Cafeteria Inclusiva, toda a equipe da Bem-me-Quer visitou a Cafeteria Especial e conheceu os processos de trabalho do local. “Para nós é uma satisfação ver que o que fazemos inspira outras pessoas, mas por outro lado, é lamentável que isso aconteça. Aliás, o que estamos fazendo não é nada de mais. O que fazemos é simplesmente olhar para o outro enquanto ser humano e dar para ele oportunidades infelizmente não oferecidas pela sociedade. Assim eles podem manifestar, a partir das suas habilidades, se eles podem ou não podem fazer o trabalho” ressalta Delfino.
Para os idealizadores isso deveria funcionar com todas as pessoas, independente de terem alguma deficiência ou não. E esse é o grande movimento da Cafeteria Especial, que a sociedade se abra para isso. Delfino ainda afirma: “Por isso, chamar atenção pelo diferente, por parecer algo fora da realidade é lamentável; afinal, isso deveria ser o normal. Damos oportunidade para as pessoas sem olhar para qualquer padrão ou classificação” afirma Delfino.
A Cafeteria Especial
O nome Cafeteria Especial, veio da ideia de que todas as pessoas são especiais e diferentes, e tem sua própria maneira de ver o mundo. “O mundo é uma criação mental que nós fazemos e, ela é gerada das histórias que vivemos e das nossas experiências. Toda vez que vemos algum fato, essas experiências aparecem, e nós interpretamos ele a partir de tudo o que já vivemos e encontramos como referências para aquele acontecimento. É isso que nos faz diferentes, porque ninguém enxerga igual a ninguém” fala Delfino.
Para Delfino, as palavras são as mesmas, mas o acolhimento de cada um é distinto. Isso gera a diversidade, por isso todo ser humano é especial, único e singular. A partir dessa forma de ver o mundo, todo o resto é acessório. Essa é a proposta da cafeteria especial, justamente para que a sociedade entendam que as oportunidades precisam ser dadas para todos.
Delfino ressalta ainda que a Cafeteria entende que a deficiência não é a única forma de diversidade que existe. Quando falamos de diversidade encontramos isso também na forma de alimentação das pessoas, o que pode ser por necessidade ou opção, e tudo faz parte da diversidade. Por isso, a Cafeteria trabalha com produtos veganos, vegetarianos, sem glúten e outras opções. Além de ser um local acessível para cadeirantes e possuir espaços para crianças e animais de estimação. “Infelizmente vivemos em um modo social que não enxerga que toda diversidade precisa ser respeitada” afirma Delfino.
Como um espaço aberto para a sociedade, a Cafeteria faz o possível para participar de todos os movimentos da região, oferecendo o espaço, participando e interagindo por todos os propósitos. São cerca de 30 voluntários que interagem com o espaço, entre pessoas físicas e empresas que ajudam de alguma forma. O local recebe ainda cerca de 20 clientes por dia.
Luiz Guilherme Prim, Fernando Manerich e Leandro Garcia da Silva, os atendentes com Síndrome de Down, iniciaram o trabalho realizando apenas o atendimento aos clientes, e hoje exercem outras funções como a de barista. Aos poucos a proposta é que eles assumam outras atividades e cuidem da Cafeteria com autonomia. Eles não são alfabetizados e, por isso, precisam de dinâmicas para o aprendizado. Delfino explica: “Entendemos, que cada ser humano tem um tempo, um processo. A sociedade tem a tendência de padronizar que todos façam do mesmo jeito e da mesma forma, mas quando você respeita esse processo, olhando para o outro, as coisas fluem com mais naturalidade independente de qualquer classificação”.
E Delfino finaliza: “Não gostamos muito da palavra inclusão, pois trás uma percepção de que quem foi excluído precisa ser incluído no que achamos normal. O que temos que fazer não é incluir e, sim parar de excluir, precisamos perceber que todos somos seres humanos e todos merecem uma oportunidade”.
Fotos: Eduarda Loregian








































Fotos: Eduarda Loregian
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